A jornada de Alexandre Castello Branco na Ultra BR 135

A experiência de um atleta amador em correr por mais de dois dias seguidos em uma das provas mais difíceis do Brasil, com 217km

Alexandre Castello Branco (à direita) e Milton Cezimbra durante a Ultra BR 135. Foto de Beto Noval
Alexandre Castello Branco (de preto) e Milton Cezimbra durante a Ultra BR 135. Foto de Beto Noval

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"Quando me inscrevi e fui aceito para a Ultra BR 135, uma das ultramaratonas mais difíceis do Brasil, sabia que seria duro, não só pelos 217km (135 milhas, por isso o nome da prova) de montanha e absurdo ganho de elevação. Mas também por ser uma prova que largaria no dia 16 de janeiro, logo depois das celebrações de fim de ano e no calor escaldante de janeiro.

Manter o foco no treinamento e alimentação nesse período final de preparação não seria mole. E ainda tinha a minha equipe de apoio, crucial nessa prova e que também precisava estar bem preparada para o desafio. Confesso que por vezes senti um misto de pena e culpa por “forçá-los” a fazer os longões nesse período de festas. Mas eles aceitaram o convite para a Ultra BR 35 e desde o começo eu havia avisado que o negócio seria complicado, então agora aguenta! Rsrs

Minha equipe de apoio foi composta pelo Michel e Milton Cezimbra, dois amigos que a corrida me deu e que atuariam como pacers também, e o Beto, meu amigo/irmão da vida, que não corre nem 1km mas me conhece como poucos. À distância, em viagem à trabalho, minha esposa também acompanhou tudo de perto, sempre dando orientações e recebendo os reports da equipe.

Então era isso, depois de meses de treinamento chegava a hora da Ultra BR 135. Pela primeira vez faria uma distância dessa, mais que o dobro do máximo que já havia feito antes, ou seja, a partir de determinado momento da prova, tudo seria novidade.

Larguei às 10h, num calor que desde cedo já dava as caras e fritava os corredores. Em pouco tempo a camisa já estava encharcada. Tinha combinado de fazer os primeiros 33km sozinho, sem pacer, e, a partir de Águas da Prata, alguém já viria do meu lado, como apoio. Cheguei na cidade com o motor fervendo. Precisei jogar água gelada na cabeça e sentar na sombra por alguns minutos para esfriar o corpo. Ali passou rapidamente um pensamento na cabeça. “Ainda faltam 184km, será assim até o final?” “Não, para de pensar nisso, vai por etapas!” E assim segui em frente, agora com o Milton do meu lado.

Havia participado da Ultra BR 135 em 2019 como equipe de apoio/pacer e lembro que tinha achado as subidas bem fortes, mas quando você está lá correndo o percurso todo, a coisa é bem pior. A estratégia era andar em praticamente todas as subidas e correr/trotar nas descidas e no pouco plano que teria. Logo no começo, na Serra da Paulista e na subida com o sugestivo nome de Deus Me Livre, a Ultra BR 135 já mostrava suas cartas. Minha equipe de apoio já havia entrado totalmente no clima da prova e não me deixava faltar nada. Trabalho impecável desde o começo! Não tenho palavras para agradecer o que eles fizeram. A cada meia hora eu deveria comer e beber alguma coisa, sempre variando os alimentos e bebidas para não enjoar de nada. Era preciso manter a máquina sempre funcionando!

Fomos acumulando kms e também fazendo amizades ao longo do caminho, o que é um dos grandes baratos dessa prova. Conhecemos o Rodney, cara gigante, fisiculturista gente boa que estava sozinho como apoio de um atleta americano. Ele já havia feito a Ultra BR 135 algumas vezes e nos indicou uma cachoeira no meio do caminho, que era ótima para dar uma refrescada no corpo e relaxar as pernas.

Como o calor estava de matar, achamos uma boa fazer essa parada rápida e a decisão não poderia ter sido mais acertada. A água gelada baixou a temperatura do meu corpo e dei uma bela relaxada nas minhas panturrilhas, que haviam sofrido um pouco nesse início de prova. Saí de lá renovado e pronto para seguir em frente! Vambora, a primeira maratona já ficou para trás!

A tarde começou a cair e, de longe, já vimos a trovoada e as nuvens pretas se formando. A previsão para a noite era de tempestade e, possivelmente, granizo. Legal! Nossa ideia inicial era chegar em Andradas de noite e fazer ali uma refeição um pouco mais encorpada com Cup Noodles para seguir correndo a madrugada inteira.

Com a iminência de chuva e a perspectiva de chegarmos na cidade já molhados para comer, a equipe de apoio arrumou uma casa no meio do nada e perguntou se poderíamos esquentar a água para o macarrão. Para nossa surpresa, fomos recebidos como reis, na melhor hospitalidade mineira que você poderia encontrar. Sentamos em uma mesa na varanda e a senhora que nos recebeu trouxe mandioquinha, uva, pão caseiro, chuchu, doce de leite caseiro, café, refrigerante e tudo mais que você possa imaginar. Que receptividade! Deu até preguiça de seguir em frente. A vontade era ficar ali a noite toda comendo e conversando com eles.

Uma última esticada nas pernas na grama e seguimos em frente. Pouco tempo depois, chegou a noite e com ela veio a chuva forte, bem forte. Que delícia, acho que foi o período mais gostoso da prova. Não estava muito frio, estávamos encharcados, mas nos divertindo demais. Essa madrugada, pulando de poça em poça, passou rápido.

Amanheceu, tirei as meias molhadas, troquei de tênis (levei 3!) e seguimos em frente. A estratégia de alimentação e hidratação para a Ultra BR 135 seguia perfeita. Minha equipe de apoio não deixava faltar nada e estava sempre preocupada comigo. Como estávamos entre bons amigos, ríamos muito o tempo todo e nos divertíamos tanto que mesmo com todos os perrengues o clima estava sempre leve.

No km 135, em Borda da Mata, um dos pontos de controle da prova, resolvemos parar para descansar um pouco. Deitei em uma cama improvisada que tinha na praça e pedi para ser acordado 20 minutos depois. Nem estava com sono, mas só de tirar o tênis e relaxar um pouco as pernas já foi ótimo. Pisquei e quando vi, o Milton já estava me acordando. Nunca vi 20 minutos passarem tão rápido!! Levantei, comemos algo rápido em um restaurante à quilo e seguimos em frente. Alguém falou que os próximos trechos seriam os piores da prova. “Pior do que já foi até aqui??”. “Para de resmungar e vamos em frente!”, pensei.

Começamos devagar até o corpo acordar e começamos a subir, subir e subir. Nunca vi tanta subida na vida. Em um dado momento, o Michel definiu bem que a prova se chamava BR porque era a junção de todas as piores subidas do Brasil numa prova só. Não só as subidas mas as descidas, de tão íngremes, quase não permitiam correr. Só serviam para travar as pernas e os músculos e diminuir a velocidade. Pensando bem, hoje eu tenho certeza que as descidas foram piores que as subidas.

Muitas subidas depois e com a noite chegando, paramos em mais uma casa para pedir água quente para o macarrão. Nessa casa, além da criança psicopata que não parava quieta, sentimos também o frio chegando com tudo. Tivemos que comer rápido, trocar as roupas molhadas e colocar casaco para seguir em frente. Frio na serra a gente sabe bem como é.

No meio da segunda madrugada, o cansaço e os efeitos da falta de sono começaram a minar a equipe. Em uma das subidas infinitas, em que achávamos que chegaríamos na lua, o Mike começou a dormir andando e falou que precisava descansar um pouco no carro. Chamei o Milton para correr e ele estava tremendo de frio. O Beto estava dirigindo direto, com os olhos vermelhos de sono, mas falou que estava aguentando. Pedi o ipod e segui em frente sozinho por um tempo. Estava começando a ficar incomodado com bolhas na sola do pé, mas de uma maneira geral estava bem, sem frio, sem fome e confiante. A música nesse momento ajudou bastante também. Agora faltava cada vez menos!

O segundo dia começou a nascer e pela primeira vez pude entender melhor quando todos diziam que tinham alucinações na prova. Eu e Mike começamos a ver pessoas onde na verdade eram sombras de árvores. Vimos uma mulher segurando um guarda-chuva aberto, que na verdade era um orelhão com dois sacos de lixo embaixo. Vimos animais onde havia mato e plantas. Vimos lindos filhotes de elefante conversando perto do ponto de ônibus. Incrível! Depois de belas risadas, parei novamente no carro de apoio para furar e tratar minhas bolhas da sola do pé. Além delas, meu tornozelo esquerdo estava virando uma bola e doendo bastante também, fruto das freadas nas descidas íngremes ao longo dos dois dias.

Quando faltavam menos de 16km, eu simplesmente não conseguia mais pisar direito no chão. Até caminhar era como se estivesse pisando em pregos. Ainda dava tempo de chegar antes das 48h de prova, que me daria a classificação automática para a Badwater 135, outra prova louca, mas do jeito que estava, não seria mais tão simples.

Fui indo bem devagar, sentindo muitas dores nos pés e ainda fazendo cálculos sobre o tempo de término. Acontece que a BR castiga e até o último quilômetro têm subidas e descidas bem íngremes. Não tem alívio. Antes de umas das últimas subidas já tinha aceitado que não faria em menos de 48h. Tudo bem, se fizesse abaixo disso seria lucro, desde o começo o objetivo principal era terminar “bem” a prova.

Expectativas alinhadas, segui me arrastando nos últimos quilômetros e entrei em Paraisópolis com dor mas rindo, feliz por ter concluído esse desafio doido. Em 48h27m cheguei e só aí me dei conta do tamanho da jornada e do que tinha conseguido fazer. Caí em lágrimas, abracei a equipe de apoio e sentei no banco para assimilar tudo. Liguei correndo para minha esposa que estava a trabalho na Europa para contar que tinha conseguido! Que sensação boa, não tenho como descrever em palavras.

A Ultra BR 135 é mais que uma simples prova de corrida. É uma experiência. Ninguém sai dela do jeito que entrou. O que eu e a minha equipe de apoio passamos nessas 48h ficará marcado para sempre. A camaradagem entre os atletas, a hospitalidade dos moradores em todas as cidades que passamos, os desafios que a natureza impôs, as histórias que temos para contar, tudo isso vale mais que a medalha que coloquei no peito.

Tudo isso faz valer a pena voltar outro ano e repetir tudo de novo.

Será que nos vemos em 2021?

Missão cumprida!"

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