Bronze no Pan, venezuelana foge da fome e retribui peruanos no Parapan

Judoca Yuliana Bolivar deixou a Venezuela em 2016 para tentar uma vida melhor e ganhou, com as cores peruanas, medalha nos Jogos. Celebrada na cidade, ela é voluntária no evento

Yuliana Bolívar
Yuliana Bolivar é atração entre os peruanos graças ao seu bronze no Pan. No Parapan, nova função (Foto: AFP)

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Determinada a enfrentar apertos para ter uma perspectiva de vida melhor, Yuliana Bolivar colhe os frutos dos seus esforços. A judoca da categoria acima de 78kg, que ganhou a medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Lima, em agosto, virou celebridade no país que a adotou e voluntária no Parapan, que termina neste domingo.

Nascida em Ciudad Guayana, a venezuelana decidiu tentar a vida no Peru em 2016, após perder o emprego como fisioterapeuta e ficar sem dinheiro até para comer. Desde a infância, ela estabelecera conexão com a nova nação, já que seu pai, Julio Cesar Bolivar, presidia uma liga de futebol para pessoas do Peru, na Venezuela. Este ano, a judoca conseguiu a naturalização para competir pelo país, que não tinha uma atleta de seu peso na equipe nacional.

Desde 2017, Yuliana, que tem o sobrenome do líder revolucionário Simón Bolivar, mas diz desconhecer relação de parentesco, treina com o apoio da Federação Esportiva Peruana de Judô. O processo para se naturalizar exigiu paciência e gastos, mas ela persistiu, alcançou o pódio e vive dias de glória. A documentação foi liberada um mês antes do início do Pan.

Yuliana Bolívar
Yuliana Bolivar em ação no Pan de Lima (Foto: AFP)

A judoca fez parte da seleção venezuelana até 2014. No país natal, ela teve como maiores feitos um bronze nos Jogos Sul-Americanos de Santiago (CHI), em 2014, e uma prata nos Jogos Bolivarianos de 2009. Mas não havia apoio para se manter no alto rendimento, o que a fez largar o esporte naquele momento. A nação vive profunda crise socioeconômica, política e humanitária.

– O momento mais difícil foi quando eu perdi meu trabalho. Eu estava indo muito bem, mas, com a crise, que ainda não estava tão grave como agora, tive de fechar meu consultório. Não tinha trabalho. Enquanto isso, não tínhamos o que comer e eu não podia ajudar minha mãe. Tive de tomar atitudes. Sentia que estava retrocedendo – contou a judoca de 29 anos, ao LANCE!.

Diante do cenário desolador, Yuliana vendeu tudo o que tinha em seu consultório e arrecadou pouco mais de 300 dólares (cerca de R$ 1.200) para mudar de país. Gastou com as passagens e pouco sobrou. Ao chegar, foi para a casa uma senhora que a ofereceu um emprego. Em pouco tempo, ela respirava de novo o ambiente esportivo, mas somente para tratar os atletas. 

A relação com o universo paralímpico começou no consultório, já que ela atendia pessoas com deficiência motora. Foi assim que conheceu um de seus melhores amigos, o judoca Antero Fred Villalobos, medalhista de bronze no Parapan, na categoria até 81kg. Em Lima, foi voluntária de apoio aos atletas do esporte que pratica e se encantou com a experiência.

– Eu me conectei com o esporte paralímpico como fisioterapeuta. Atendia crianças com deficiências motoras e aqui, realmente, é a primeira vez que estou em um evento em que posso ver o judô e os outros esportes. É muito bonito. Eles são o melhor exemplo do que é ser forte e capaz, de esforçar-se para alcançar seus sonhos, mesmo com as limitações. Quero aprender ainda mais – diz a atleta, que deu um abraço forte em Fred após o feito do amigo.

Yuliana levou o ouro no Pan de Lima ao bater a americana Kina Cutro-Kelly.


Embargo é golpe no esporte


A crise que atinge a Venezuela e levou pessoas como Yuliana Bolivar a deixar o país se arrasta há anos, mas piorou de 2013 para cá, com o falecimento do ex-presidente Hugo Chávez e a disputa pelo poder que se instaurou.

Em janeiro deste ano, o oposicionista Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino da Venezuela, por não reconhecer a reeleição de Nicolás Maduro. E o caso ganhou novos capítulos em agosto deste ano. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fortaleceu as ações contra o regime.

O embargo total ao país causa impactos graves a atletas, que não recebem equipamentos essenciais, e à população. No Parapan, a nação tem 33 medalhas, sendo dois ouros, com Lisbeli Vera (400m livre T47) e Edwards Varela (arremesso de peso F37), além de 10 pratas e 21 bronzes até o momento.

BATE-BOLA
Yuliana Bolivar
Judoca, ao LANCE!

‘Na Venezuela, eu estava estagnada’

Por que deixou a Venezuela?
Deixei a Venezuela porque sentia, apesar de ser jovem e profissional, que eu nunca poderia me desenvolver, comprar minhas coisas, ter um carro, uma casa própria com meu trabalho, ajudar meus pais. Eu estava estagnada e queria buscar novas oportunidades para melhorar minha qualidade de vida, de maneira independente. A crise ainda não estava tão forte quanto agora, mas começava a me afetar e eu não quis esperar o pior para imigrar.

O que te motivou a escolher o Peru para viver?
Escolhi o Peru por diversas razões. Há muitas oportunidades, gosto da cultura, da comida, as pessoas. Tenho contato com peruanos desde pequena. Gosto muito da qualidade humana que tenho aqui. Apesar de minha mãe ser colombiana e de que ter a oportunidade de me nacionalizar muito mais rápido por lá, preferi o Peru. Eu queria sair do núcleo familiar, ter minha independência e melhorar sozinha para poder ajudar meus pais. Não queria ficar dependendo deles.

Você voltou para a Venezuela desde que imigrou? Vê luz no fim do túnel?
Não visito a Venezuela há quase três anos, mas minha família vive lá. Tenho a certeza de que um dia essa situação irá melhorar, mas só o tempo dirá quando.

Por que decidiu ser voluntária no Parpan?
Quis ser voluntária porque gosto sempre de ajudar. O fato de obter uma medalha não significa que vou mudar minha forma de agir. Tem um atleta do Peru que é muito amigo meu e queria estar com ele. Somos uma família e temos de trabalhar em equipe.

O que projeta no judô agora?
Minhas ambições no judô no momento são ganhar o maior número de combates que eu puder pelo Peru e melhorar minha classificação no ranking. É óbvio que ir a Tóquio é uma possibilidade difícil, porque eu comecei a luta por pontos na classificação tarde, mas irei me esforçar para alcançar um feito desta dimensão.

Você tem o sobrenome de Simón Bolivar. O que pensa sobre ele? Tem algum parentesco?
Na verdade, não sei se tenho alguma ligação distante, mas acredito que foi um homem muito valente e de valor, que alcançou a libertação de meu país natal e contribuiu para sua independência. Um grande homem, seja meu parente ou não (risos). Eu me sinto muito identificada com ele, porque foi um homem de luta, que se esforçou pelo melhor de nosso povo.

COM A PALAVRA

É preciso ter carinho com a Venezuela

Andrew Parsons
Presidente do Comitê Paralímpico Internacional (IPC)


Temos trabalhado com a Venezuela há dois anos. O país passa por um processo difícil por causa da crise, que é aguda e afeta o esporte. Nós mandamos pessoas para lá para tentar ajudar na transição de poder no Comitê Paralímpico local. A performance deles caiu demais, pois os investimentos no esporte chegaram a ponto próximo de zero. Eles têm problemas de recursos para se inscrever em provas. Nós procuramos ter um carinho com a Venezuela para ajudar a mantê-los no esporte paralímpico. Atletas deixarem seus países é algo comum hoje.

* O repórter viaja a convite do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB)

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