Na trincheira! Crise política traz duras sequelas ao futebol boliviano

Turbilhão em torno da acusação de fraude na reeleição de Evo Morales e sua posterior renúncia adia seis rodadas do campeonato local e afeta até torneio internacional

Manifestações constantes desde a reeleição sob suspeita de Evo Morales já interromperam competição local
(Foto: AFP)

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O impasse acerca das eleições na Bolívia tem causado graves sequelas ao futebol local. Com o país em polvorosa, em virtude dos desdobramentos em torno com protestos pela acusação de fraude na reeleição de Evo Morales para presidente da República, os clubes lutam para que a bola, enfim, volte a rolar no Campeonato Boliviano. Não há realização de jogos pelo Clausura desde o dia 19 de outubro. 

A reunião entre a Federação Boliviana de Futebol (FBF) e os 14 clubes para organizar a retomada da competição após seis rodadas de adiamento mudou de data. Devido a protestos que vêm acontecendo em cidades como La Paz, Cochabamba, Oruro, Potosí e Sucre, o encontro foi transferido – a princípio – desta sexta-feira para sábado.

– Veremos se conseguimos resolver isto tudo o mais rápido possível. Lamentavelmente,  é muito triste o que vivemos. Estamos em uma situação de constante alerta. Mas precisamos nos reunir para saber se podemos ter condições para  – afirmou o presidente da FBF, Cesar Salinas, ao LANCE!.

Comunicado - FBF
A FBF adia o encontro, devido aos conflitos sociais que assolam Cochabamba (Divulgação)

A data planejada inicialmente pela Federação já foi descartada devido à falta de tempo hábil (que o Campeonato Boliviano voltasse a ter jogos a partir deste fim de semana). Os conflitos continuam a fazer parte da rotina de várias regiões da Bolívia.

Neste sábado, em Santa Cruz de la Sierra, duas alternativas tendem a ser colocadas na mesa: a competição voltar na próxima quarta-feira ou no dia 23 de novembro. Salinas vê a hipótese do Clausura só terminar em 2020 ainda como remota. 

- Seria um caso extremo. Agora é o momento de pensar passo a passo.

O mandatário admite que uma das preocupações é a polarização política em torno da renúncia de Evo Morales. Por mais que o antigo presidente tenha saído sob protestos do povo e sem apoio das Forças Armadas, há manifestações a seu favor em sua chegada.

Cesar Salinas reconhece que há uma preocupação das ásperas discussões tomarem conta das arquibancadas. 

– O tema das manifestações é muito sensível para nós. Naturalmente, colocaremos isto em pauta na reunião. Nossa prioridade é trazer a alegria de volta, com as partidas de futebol. Acima de tudo, o futebol é um esporte democrático, queremos promover a conciliação - afirmou.

Mesmo diante do impasse quanto ao futuro do Clausura (nome dado ao segundo semestre do Campeonato Boliviana), Leonel Justiniano se mostra tranquilo quanto à data para voltar a campo. O meia, que atua pelo Jorge Wilstermann e com passagem pela seleção da Bolívia, se notabilizou por falar abertamente sobre os problemas que assolam o país.

– Acima de tudo, pensamos no povo boliviano. Seria complicado disputar as partidas neste momento que vive o país. Espero que agora, com a democracia restabelecida, a paz volte aos estádios e nas ruas e, com isto, todos possamos desfrutar do futebol - declarou.

SEM SEDIAR TORNEIO E NADA DE AMISTOSOS DA SELEÇÃO PRINCIPAL

César Salinas - Presidente da FBF
'Causou uma lástima perdermos a sede do Sul-Americano Sub-15', diz Cesar Salinas (Foto: Divulgação)

A crise política causou duro golpe para a Bolívia na parte desportiva. A Federação Boliviana de Futebol (FBF) teve de abrir mão de sediar o Campeonato Sul-Americano Sub-15.

- Causou uma lástima muito grande para nós esta perda do torneio. Mas não tínhamos condições de abrigar uma competição desta dimensão, com dez seleções, diante de tudo o que estava acontecendo nas ruas. Não teríamos como dar garantias de segurança para eles - lamentou Cesar Salinas.

O torneio de base, que acontecerá entre os dias 23 de novembro e 8 de dezembro, será realizado no Paraguai.

A seleção principal também passou por mudanças em seu cronograma. Os amistosos de Data Fifa, contra Chile e Panamá (nos dias 15 e 19 de novembro, respectivamente) foram cancelados.  

'ESPERAMOS QUE AGORA OCORRAM ELEIÇÕES MAIS TRANSPARENTES'

Leonel Justiniano - Meia do Jorge Wilstermann
'Sou sempre a favor da democracia', diz Leonel Justiniano (Foto: Divulgação/Jorge Wilstermann)

A frustração com os rumos tomados por Evo Morales no poder levou Leonel Justiniano a usar sua projeção no futebol para manifestar-se para os torcedores nas redes sociais. O jogador de 27 anos detalhou como viu a comoção da população.

– A impressão é que subiram os egos, houve ambição de poder, a ponto de uma fraude ser feita para que ele (Evo Morales) vencesse uma eleição. Não pode ser assim. Eu estou sempre a favor da democracia. – declarou.

O meio-campista vê com bons olhos os novos rumos da política na Bolívia. Mesmo em meio ao período turbulento, com protestos intensos a favor e contra Evo Morales, Justiniano mantém sua confiança em um novo cenário.

– Esperamos que se possa voltar a estabelecer a paz e a democracia. Que
tenhamos eleições limpas, mais dignas, que seja escolhido um presidente de maneira transparente – disse, em referência ao fato da senadora Jeanine Áñez ser designada para convocar novas eleições.

Leonel admitiu que chegou a ficar receoso com reações adversas nas redes sociais por manifestar-se politicamente sobre a situação do país.

– É complicado se manifestar em um assunto como este. Mas eu sempre digo que este é um país livre. Minhas opiniões nunca mudaram, sempre acredito na liberdade das pessoas, e espero que tudo se normalize da melhor forma aqui na Bolívia.

Uma das esperanças do Jorge Wilstermann, que é o atual líder do Clausura (com 36 pontos, três a mais que o Bolívar, campeão do Apertura), Leonel Justiniano fala sobre o desafio que encontrará em campo.

– Faltam ainda dez rodadas. Temos fortes concorrentes, como Bolívar, The Strongest, San José, e as rodadas finais são difíceis. Dependerá muito da nossa preparação e também de como nos portarmos dentro e fora de casa. Mas estamos focados para não perder o embalo neste período difícil – afirmou.

‘NÃO TIVEMOS PROGRESSO NOS ESPORTES’, AFIRMA ÁLVARO PEÑA

Alvaro Peña - Ex-jogador da Bolívia
'Futebol é um reflexo do quanto não avançamos em outras áreas', declara Peña, jogador da Bolívia na Copa de 94 (Foto: Divulgação)

Além da indignação com a conduta de Evo Morales como presidente da República, atletas e ex-jogadores bolivianos mostram-se frustrados com a maneira como ele lidou com o esporte do país.

Um dos destaques da seleção que foi sensação nas Eliminatórias em 1993 e se classificou para a Copa do Mundo de 1994, Álvaro Peña dispara.

– Nestes 13 anos, a impressão é que o futebol boliviano retrocedeu. Não se trabalhou para aprimorar a infraestrutura, para ajudar a fortalecer os clubes e o futebol boliviano. E os resultados são evidentes. Em 1997, disputamos uma final de Copa América, enquanto neste ano, fomos eliminados jogando muito mal. Temos condições de gramado bem inferiores às do Brasil, Argentina, Venezuela... – e, em seguida, emendou:

- Não há qualquer estádio ou centro de treinamento de primeiro mundo aqui na Bolívia. Falo isto tanto pelas passagens que tive como jogador quanto como treinador. Estamos muito empobrecidos no futebol - completou. 

Peña foi categórico sobre a situação que assola o país.

– O fato de não avançarmos futebolisticamente é só um reflexo do quanto não avançamos na saúde, na educação, que tem de ser primordial. E não vimos isto com a mentalidade socialista implementada em 13 anos - declarou.

A SITUAÇÃO NA BOLÍVIA

Bolívia - Protestos
'Evo se ampara em uma bravata para agitar correligionários', diz especialista (Foto: AFP)

COM A PALAVRA

'Evo Morales expôs seu autoritarismo'

WILLIAM BASCOPÉ
Advogado constitucionalista

A forma como este processo eleitoral foi conduzido expõe o quanto Evo Morales se tornou autoritário. Ele chegou ao poder com apelo popular por ser indígena e líder sindical. Teve um início de ciclo com medidas que agradaram boa parte da população, e trazendo melhorias para a economia boliviana.

Porém, com o decorrer dos anos, ele cometeu alguns graves erros. Além de afastar-se dos ideais que propunha inicialmente, Evo passou por cima da Constituição com um único objetivo: tentar reeleger-se indefinidamente.

Na eleição que aconteceu ao fim de outubro, a auditoria deixou ainda mais nítido o que se mostrava na apuração: houve fraude. Evo e Carlos Mesa iriam para o segundo turno, até a misteriosa mudança de rumo. Isto gerou a insatisfação popular e a pressão tanto das Forças Armadas quanto de grupos com os quais anteriormente ele tinha ligação

A renúncia foi apenas uma estratégia. Ao dizer que sofreu “golpe”, Evo Morales se ampara em uma bravata para agitar seus correligionários e fanáticos, recorrendo até mesmo ao ódio racial.

Só que ele deu um golpe nele mesmo, porque quis passar por cima da Constituição. Tanto que Jeanine Añez chega ao poder com a missão de convocar novas eleições, como está previsto na lei.

EVO MORALES, DA ASCENSÃO À DERROCADA

Evo Morales - Bolívia
Evo foi o presidente que mais tempo esteve no poder na Bolívia (Foto: AFP / PEDRO PARDO)

Início de ciclo

Evo Morales toma posse em 2006. Ele chega ao poder contando com forte apoio popular, apoiando-se em um discurso mais socialista e bastante crítico quanto aos governantes anteriores, que se mostravam mais entreguistas em relação aos recursos do país. Além disto, implementa medidas como luta contra o analfabetismo, criação de emprego e a nacionalização do hidrocarboneto, para garantir que 50% dos valores do gás fossem nacionalizados. A economia se torna referência.
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Referendo
Um de seus projetos, uma mudança na Constituição é aprovada em 2009: a reeleição em dois mandatos. Com forte apelo popular, Evo consegue o direito de se candidatar às eleições e vence para mandatos em 2010 e 2014.

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Protestos
Evo começa a tomar medidas polêmicas. O “gasolinazo”, que traz um aumento de 100% nos preços de alimentos, passagens de ônibus e outros produtos, rende fortes protestos pelo país. A medida é revogada.
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Acusações
Surgem denúncias de corrupção em obras para a demanda marítima, tráfico de influência, lavagem de dinheiro até mesmo de Evo ter gasto uma fortuna para criar um museu para si próprio.
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Manobra
Diante de pressões de seus aliados, o Tribunal Constitucional Eleitoral da Bolívia aceita que Evo Morales tente emplacar seu quarto mandato.
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Eleições-2019
Com 83% das urnas apuradas, as eleições indicavam a necessidade de um segundo turno entre Evo Morales e Carlos Mesa. Entretanto, após interrupção de 20 horas na contagem de votos (o sistema é em cédulas), sua reeleição foi confirmada no primeiro turno, com 46,8% dos votos, contra 36,7% do adversário.  Segundo a Constituição, para ser eleito, o presidente tem de obter mais de 50% dos votos ou 40% com total de dez pontos de vantagem sobre o segundo colocado.

Jeanine Añez - Senadora e autoproclamada presidente
Senadora de oposição é, no momento, presidente da Bolívia (Foto: AFP / AIZAR RALDES)

Contestações e clima de guerra

Carlos Mesa exige recontagem de votos, e começam momentos de vandalismo em torno da eleição: há incêndios em urnas, tribunas eleitorais, sindicatos e comércios empresariais. A Organização dos Estados Americanos (OEA) realiza uma auditoria, e os protestos se acentuam nas ruas. Surgem primeiros pedidos de renúncia de Evo Morales e do vice Álvaro Pereira.
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Renúncia
Alvo de protestos nas ruas (contra ou a favor), acusado de pressionar seus opositores, Evo Morales perde apoio também nas Forças Armadas. Em 10 de novembro, ele anuncia sua renúncia do cargo pela televisão. No discurso, acusa Carlos Mesa, seu concorrente no pleito, e Luis Fernando Camacho, seu opositor declarado, de perseguirem líderes sindicais e insuflarem ódios, além de tramarem um "golpe". O ex-presidente da Bolívia pede asilo político no México.

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Sucessão de saídas

Além de Evo deixar a presidência da Bolívia após 13 anos, o seu vice Álvaro García Linera, a presidente do senado, Adriana Salvatierra, e Victor Borda, presidente da Câmara dos Deputados, seus seus respectivos cargos. Membros do TSE são presos por suspeitas de fraude nas eleições.
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E agora?

Segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez assume o poder na Bolívia, com a missão de convocar novas eleições (Evo, inicialmente, não pode lutar por um quarto mandato, caberá à Justiça Eleitoral ratificar quais serão os candidatos do novo pleito).  Porém, os protestos e polarização seguem nas ruas. Grupos de camponeses e indígenas vão às ruas em algumas cidades pedem a saída de Áñez. Evo, no asilo político no México, acusa os Estados Unidos de estarem por trás do golpe. O governo interino também busca diálogo com partidários do Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Morales, para que haja a viabilização de uma paz. Na capital, o transporte volta a funcionar de maneira parcial e universidades estão com suas aulas suspensas. No restante do país, há bloqueios nas ruas e nas vias. 

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