Luta de atletas, Maracanazo, olhar para a base… Por que Uruguai é forte?

LANCE! ouve Lugano, Arrascaeta e pesquisador uruguaio para tentar explicar a força histórica da Celeste, que levou o país a dois títulos mundiais e hegemonia na Copa América<br>

Seleção Uruguaia
AFP

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Apesar da pequena extensão de seu território e da população reduzida (são cerca de 3,5 milhões habitantes), o Uruguai, que divulgou nessa semana sua lista para a Copa, tem uma das seleções mais tradicionais e respeitadas do futebol mundial. Primeiro campeão do mundo, em 1930, quando sediou a competição, repetiu a dose em 50 e acumula 15 troféus da Copa América, o líder de conquistas do torneio, o futebol uruguaio passou por transformações ao longo de sua história que foram importantes para o que se estabelecesse a força da Celeste Olímpica (referência ao bicampeonato dos Jogos em 24 e 28, na era pré-Copa do Mundo). O título de 1950 no Maracanã, a atuação do jogador Obdulio Varela na profissionalização do esporte, o trabalho do técnico Oscar Tabárez e o cuidado com as divisões de base foram fatores decisivos na construção dessa trajetória de êxitos e orgulho nacional. 

O LANCE! conversou com Diego Lugano, ex-capitão da Celeste e campeão do mundo pelo São Paulo (2005), Giorgian Arrascaeta, camisa 10 do Cruzeiro e promessa da atual seleção, e Juan Silvera, uruguaio e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), para entender melhor como se deu essa caminhada da Celeste para a conquista de tanto prestígio. Veja abaixo:

"Pé de obra em pé de luta. E o que tinha sido capitão da greve foi então capitão de uma vitória impossível" *

A primeira grande transformação no futebol uruguaio se deu nos anos 40 e 50. A conquista da Copa do Mundo de 1950, no Brasil, marcou a consagração de uma geração talentosa, marcada pelo desamparo dos dirigentes, a luta pelos direitos dos jogadores de futebol e a profissionalização do esporte. O volante Obdúlio Varela foi protagonista, tanto da luta dentro de campo quanto fora dele.

Antes da Copa de 50 e da greve que marcou o futebol uruguaio na década de 40, vale ressaltar os feitos que a Celeste já havia obtido anos antes. O futebol uruguaio botou o pequeno país no centro das atenções. As vitórias no futebol nas Olimpíadas de 1924, em Paris, e em 1928, em Amsterdã, credenciaram os sul-americanos a sediar a primeira Copa do Mundo da história, da qual saíram campeões.

- O Uruguai era um país de vanguarda na América Latina. Era chamado de 'Suíça da América', por conta da educação, da renda per capita, qualidade de vida e leis que o faziam um país diferenciado. Muitas vezes o futebol é um reflexo do país e o Uruguai naquela época era uma potência - afirma Lugano, ex-capitão da Seleção Uruguaia

Depois desse período de conquistas, o Uruguai passou por uma crise institucional que se refletiu no futebol. Em 1948, uma greve organizada pelos jogadores pressionava os dirigentes locais por mudanças e, principalmente, respeito. Obdúlio Varela foi a principal voz desse movimento.

Conhecido como ‘El Jefe Negro’ (O Chefe Negro), Odbulio Varela já tinha uma carreira consolidada como jogador, com passagens pelo Montevideo Wanderers, Peñarol e seleção uruguaia. Dentre as reivindicações, os jogadores queriam melhorias de salários, direitos independentes aos clubes e reconhecimento de jogador de futebol como profissão. Após um ano de greve, os dirigentes cederam, com medo de que a Seleção não participasse do Mundial de 50.

- Obdúlio Varela e os outros jogadores vencedores foram muito benéficos para o futebol - valoriza Lugano

"Na noite anterior, ninguém conseguia dormir. Na manhã seguinte, ninguém queria despertar"

O título de 50 não aconteceu por acaso. Unificados por Obdúlio, os jogadores estavam focados na competição ocorrida no Brasil. Com jogadores do porte de Scchiaffino e Gigghia, a seleção tinha talento. O capitão fez questão de incluir os jogadores que não participaram da greve no elenco, blindando a equipe de possíveis rachas.

A imprensa brasileira, com respaldo nos políticos, criou um ambiente de “já ganhou” que incomodou e motivou os uruguaios. Na final, porém, o Maracanã escutou o "maior silêncio de sua história" e mais de 200 mil vozes se calaram diante de uma das derrotas mais sofridas do futebol mundial, no episódio que ficou famoso como "Maracanazo".

- Não era nenhum absurdo que o Brasil perdesse para o Uruguai em 50. Claro que tomou proporções de tragédia, por ter sido um projeto de nação, de ter sido aqui no Brasil e por conta do ‘oba oba’ dos políticos e da imprensa. Antes do jogo, o prefeito do Rio de Janeiro fez um discurso vergonhoso e, um dia antes, o governador deu uma coletiva de imprensa dizendo ‘desculpa à imprensa estrangeira, mas nós já somos campeões’ - explica Juan Silvera, uruguaio e pesquisador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte da UERJ

Obdúlio foi capitão dentro de campo e figura capital fora dele. Foi ele que, após o Brasil abrir o placar com Friaça naquele 16 de julho, fez uma cera de três minutos para esfriar o jogo. Foi dele a ideia de entrar junto com a equipe brasileira, evitando, assim, a vaia de mais de 200 mil pessoas ao seu time. A vitória de 2 a 1 foi teve um impacto enorme na sociedade brasileira. Após o título, Obdulio não comemorou com os jogadores, andou sozinho, de bar em bar, nas ruas do Rio de Janeiro: o vencedor se unia aos vencidos.

- As palavras de Obdulio Varela falando que, se ele pudesse escolher, se ele soubesse o mal que a vitória faria a tantos milhões de brasileiros, por conta da dor da derrota, talvez teria perdido o jogo, são lembradas até hoje por historiadores - relembra Lugano

A vitória de 50 foi a cereja do bolo da luta dos jogadores por mais direitos, que teve como consequência mais respeito para a profissão. A partir daí, mudanças nas gestões aconteceram e tiveram como marco o início da profissionalização do esporte. Esses fatores abriram as portas para que outros jogadores surgissem e novos investimentos ocorressem para sustentar o futebol no país.

– Sabemos que o Uruguai conquistou muitas coisas importantes, como essa Copa do Mundo. Todo mundo lá no Uruguai conhece a história do Maracanazo. Repercutiu muito lá e para nós jogadores também, por tudo que aquela Seleção conquistou para nós, então ainda é muito presente. É uma motivação a mais para nós jogadores para nunca desistir – valoriza Giorgian De Arrascaeta, atual camisa 10 do Cruzeiro


"Em plena era de globalização obrigatória nos recordam que o melhor do mundo está na quantidade de mundos que o mundo contém"


A conquista do bicampeonato mundial e os feitos anteriores criaram uma espécie de "pressão ruim" para as gerações seguintes. No intervalo entre 50 e o quarto lugar na Copa de 2010, a melhor campanha havia sido em 1970, 20 anos depois do Maracanazo. Os torcedores e, principalmente, a imprensa cobravam muito os jogadores.

- Existe muita pressão, cobrança e ilusão. Um quarto lugar é sim um bom resultado. Todos querem ser campeões, mas não podemos ser tão néscios de não perceber que o futebol mudou. Temos que competir para deixar o prestígio do Uruguai alto, mas sem nos achar com a obrigação de ser campeão - comenta Lugano

– Existe uma pressão que acontece com toda seleção que disputa o Mundial. Sabemos que vamos enfrentar as melhores seleções do mundo e só uma é campeã. Obviamente, o povo fica um pouco ansioso, mas eles também estão conscientes que a nossa seleção está em um processo importante, está crescendo – disse De Arrascaeta

A pressão só foi diminuir a partir da década de 80. A globalização tirou os principais jogadores uruguaios da América e os lançou para Europa, criando um distanciamento com torcida e a imprensa. O futebol passava por uma internacionalização e, se antes, a Copa do Mundo era primordial para o sucesso profissional e financeiro dos jogadores, agora, ir para o Velho Continente era a principal referência.

- Antigamente, os jogadores sabiam que se jogassem na seleção praticamente estariam vendidos para Europa. Chegar na seleção era um passaporte para ganhar dinheiro, fazer a sua independência. Depois da globalização isso desparece, os jogadores primeiro vão para a Europa e depois para a seleção - destacou Juan. 

A maior expressão dessa geração foi Enzo Francescoli. O uruguaio jogou na França (Olympique e Racing Paris) e na Itália (Cagliari e Torino). Depois foi ídolo do River Plate, onde ganhou a Libertadores (1996). Apesar da habilidade, Francescoli não foi longe nas duas Copas que disputou (1986 e 1990), sendo eliminado em ambas nas oitavas de final (por Argentina e Itália, respectivamente). Porém, com menos pressão, venceu três vezes a Copa América (1983, 1987 e 1995), ganhando do Brasil nas finais de 83 e 95.


"Oscar Tabárez conseguiu que a seleção uruguaia recuperasse o jogo limpo”

O século 20 se encerrava com o Uruguai consolidado e o novo milênio marcaria um recomeço. O técnico Oscar Tabárez, atual comandante da Celeste, foi fundamental para renovar o futebol do país, proporcionando o surgimento de uma geração talentosíssima. Tabárez teve um forte trabalho na formação dos atletas e também por institucionalizar um estilo de jogo e conduta dentro da seleção.

- Tabárez é uma figura totalmente diferenciada no ambiente do futebol. Ele foi professor de escola pública antes de ser treinador, então, por natureza, ele primeiro educa, depois treina. Ele tem uma concepção intelectual que eu nunca vi no meio do futebol. Em dez anos, nunca vi falar um palavrão ou levantar a voz demais. Eu acho que ele está muito por cima do se que se refere a ser treinador. Para levar um projeto de Seleção por mais de 12 anos, tem que ter uma conduta e uma liderança muito especial. Ele tem o respeito unânime de todo craque que passou na seleção -  ressalta Lugano, que já foi treinado por nomes como Carlo Ancelotti e Luis Aragonés

O treinador está à frente da Celeste desde 2006, é o profissional mais longevo atualmente em uma seleção. Com ele, o Uruguai passou a investir na base, tendo como esteios a disciplina e o respeito, preceitos fundamentais para os jovens jogadores. Para entrar na base, precisa estar matriculado na escola.

– Ele tem uma história muito enriquecedora na seleção do Uruguai. Desde que chegou lá, ele foi importante. A seleção conseguiu muita coisa para o nosso país, então ele sem dúvida foi uma marca importante dentro da equipe. Um cara muito aberto que sempre está lá para escutar os jogadores e para dar sua opinião. Isso é importante para nós quando chegamos lá, ter o apoio dele – ressaltou De Arrascaeta

Tabárez participou ativamente de todas as seleções, do infantil ao profissional. Cortou a influência dos empresários no ambiente das seleções e soube controlar a pressão da imprensa. A disciplina é um dos principais fatores de seu sucesso. Os jogadores aprendiam desde cedo a se dedicar ao esporte e a educação. Não importava o quão craque o jogador podia ser, se não fosse disciplinado, não iria vestir a camisa celeste.

- O Tabarez cortou o ‘oba oba’ da imprensa e empresários. O sistema funciona muito bem, o cara pode ser craque, mas se não se comportar não vai ser convocado. Ninguém de fora escala a Seleção. É muito mais por meritocracia do que o jogador ser craque e não importar o que ele faz fora de campo. Importa porque é exemplo para própria Seleção e para divisão de base. Os moleques todos querem ser o Cavani. Todos querem ser Luis Suárez, querem ser Godin - analisa Juan

"Como a senhora explicaria a um menino o que é felicidade? Não explicaria, daria uma bola para que jogasse"

Além de Tabárez, o Uruguai conta com uma federação que cuida, especificamente, de organizar o futebol infantil do país. Em 1967, surgia a Organização Nacional do Futebol Infantil (Onfi), que até hoje organiza competições, dá amparo às crianças e cuida do futebol infantil uruguaio. A educação, o cuidado com a saúde, a valorização do trabalho em equipe e a profissionalização são alguns dos fundamentos ensinados aos jogadores desde cedo.

– Sem dúvidas que eles tentam fomentar o aprendizado dentro e fora de campo. Educar os meninos para se darem bem na vida e para aparecer a oportunidade de jogar futebol – comentou De Arrascaeta

Existe, porém, uma ressalva na formação do futebol no país. Desde cedo as crianças são ensinadas a competir e a rivalidade é incentivada, deixando de lado alguns princípios que também são fundamentais, como o ensino de táticas e da parte técnica.

- Eu tenho tentado rever alguns programas de educação, porque o futebol infantil sempre foi muito competitivo, tem muita rivalidade. Aos cinco anos a criança já tem essa pressão, esse sentimento de competir. Porém, na etapa principal de aprender os fundamentos básicos, técnicos e coordenativos, se preocupam mais em competir. No Brasil, por exemplo, se ensinam a técnica mais refinada, tem mais contato com a bola - disse Lugano

Em 2012, foram contabilizadas mais de 60.000 crianças que participavam deste projeto, que incluía 58 ligas e mais de 598 clubes espalhados por todo país, com crianças entre 6 e 13 anos de idade. São jogadas mais de 2000 partidas por semana em todo território uruguaio, em mais de 80 cidades diferentes.

- A gente tem na mão um produto único: uma rede ramificada de futebol por todo país. Tem um fator social de educação. Agora estamos tentando unificar o futebol infantil com a educação primária e secundária, para que o Uruguai e sua criança tenha uma consciência e educação maiores. O futebol é um veículo impressionante para transmitir diretamente para os meninos essa visão - analisa Lugano

A primeira grande geração que colheu os frutos dessa união foi a de 2010, que contava com nomes do porte de Luís Suárez, Diego Forlán, Nicolás Lodeiro, Lugano e Diego Godín. A campanha de 2010 sacramentou esse trabalho. Um desempenho que trouxe um feito que não ocorria desde 1970.


"Cada vez que nós, uruguaios, ganhamos algum troféu de futebol, celebramos o triunfo da garra charrua"

Apesar das conquistas recentes, o futebol uruguaio não tem o mesmo investimento que outros países. Porém, os jogadores crescem com a confiança e o entendimento do que representam no cenário futebolístico. Com isso, os jogadores entram para dar o máximo dentro da competição e conquistar o melhor resultado.

- A realidade e o futuro indicam uma mudança, hoje competimos com países com maior investimento e números de jogadores, com um interesse maiores para que cheguem na final. Não é o mesmo, uma final entre Brasil x Alemanha, uma final Uruguai x Croácia, que não interessa a ninguém. A gente entendeu que a gente tem que trabalhar para botar o Uruguai no topo e ser competitivo, mas sem acreditar que temos que ser campeões e os melhores - discorre Lugano

O êxito em 2010 serviu para consolidar ainda mais todo esse trabalho feito nos últimos anos. Consolidado, o Uruguai ainda planta e colhe os frutos. Em 2013, foi vice-campeão mundial sub-20, e, em 2017, foi campeão sul-americano sub-20. Nomes como De Arrascaeta (Cruzeiro), Nico López (Internacional) e Rodrigo Betancur (Juventus) refrescam a nova geração celeste.

– É uma sensação máxima poder representar a sua seleção. O máximo que um jogador pode atingir é jogar na sua seleção. Conquistar uma Copa seria algo extraordinário, mas representar ela me deixa muito contente – finalizou Arrascaeta

Apesar de uma pressão menor, o feito de 50 ainda é presente no imaginário coletivo da população e a vontade de conquistar a Copa do Mundo é muito grande. Na Copa da Rússia, O Uruguai está no Grupo A, com Egito, Arábia Saudita e o país-sede. Pautados no processo de formação, a instituição de um estilo e o respeito as tradições e conquistas do passado, a Celeste busca, com a garra charrua e a disciplina de um povo, repetir os feitos de Obdúlio Varela e seus comandados. Um sonho que teima em virar realidade.

*Os títulos dos parágrafos foram retirados de livros do escritor  uruguaio (e apaixonado por futebol) Eduardo Galeano. Abaixo, na ordem em que aparecem na matéria, os livros selecionados:

• "Memória do Fogo 3. O Século do Vento", 1998; L&PM Editores
• "Espelhos", 2008; L&PM Editores
• "O futebol entre a paixão e o negócio", discurso em congresso de 1997
• "Futebol ao Sol e à Sombra", 1995; L&PM Editores
• "O Caçador de Histórias", 2016; L&PM Editores

*sob supervisão de Valdomiro Neto

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